segunda-feira, 28 de junho de 2010

I

Sonhei com ele e quando acordei me dei conta de sua presença ali... Estava tão perto e com um ar tão sereno que era como se eu não tivesse acordado. Como se estivesse vivendo o sonho mais lindo. Não sabia se fechava os olhos e tentava sonhar novamente ou aproveitava aquela realidade tão incrível. Quando o momento de êxtase acabou, fechei os olhos novamente, revirei-me na cama desarrumada e percebi que havia condenado meu coração e meus sentidos a desejarem cada dia mais aquele cheiro tão preso em meu travesseiro agora...

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Deste modo ou Daquele modo

"Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos."
O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro

quarta-feira, 23 de junho de 2010


"Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua.
Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem.
Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento.
Sim: existo dentro do meu corpo.
Não trago o sol nem a lua na algibeira.
Não quero conquistar mundos porque dormi mal,
Nem almoçar o mundo por causa do estômago.
Indiferente?
Não: filho da terra, que se der um salto, está em falso,
Um momento no ar que não é para nós,
E só contente quando os pés lhe batem outra vez na terra,
Traz! na realidade que não falta!
Não tenho pressa.
Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passe adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salte por cima da sombra.
Não; não tenho pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui."


[Alberto Caeiro - F. Pessoa]

terça-feira, 22 de junho de 2010

(...)

A sensação de estar vulnerável a todo sentimento que existe muitas vezes nos tira o poder que temos sobre nós mesmos. Mas são apenas sensações. Somos os únicos capazes de direcionar nossas vidas, seja para a dor ou para a alegria. Entretando, até que ponto sabemos disso? "Então ela abriu os olhos. Viu que estava em lugar alto e por isso frio. Seus olhos não desgrudavam do céu, que por sinal parecia muito próximo de sua face, talvez por medo de enxergar o que havia mais adiante. Não havia como parar, apesar de ser sua maior vontade, ela tinha que continuar caminhando... cada vez mais perto de um lugar misterioso. Apenas mais um passo e ali estava ele, sombrio, com poucos ruídos... Era escuro, não conseguia ver o fim daquele lugar tão fundo... E lá ela teria que entrar, explorar, conhecer essa parte de sua vida. Por um segundo a dor de estar sozinha foi a pior sensação. Logo em seguida, o medo do desconhecido a dominou. Mas talvez aquele lugar não fosse tão desconhecido assim... Ela já passara por ali, já conhecera aquele lugar. Antes, o que aos seus olhos transmitia beleza e alegria, agora retrata mistério e medo... Desistir parecia tão fácil... Ou não... Ela sabia que se olhasse bem e com calma ainda veria refletir um pouco daquela luz de antes. Então resolveu esperar, ainda que isso lhe perturbasse."

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O meu olhar

-
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.
Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
[Alberto Caeiro]